27 de outubro de 2010

Um olhar sobre a felicidade

Odilon de Mello Franco Filho1
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

RESUMO

O tema deste trabalho é a Felicidade. Tema abordado diretamente por Freud, mas que, na atualidade, parece ter desaparecido da literatura psicanalítica e das preocupações dos pensadores em geral. A questão da Felicidade tem correspondido a noções diferentes através dos tempos e reflete a cultura vigente em cada época. O presente trabalho é iniciado com um rastreamento das várias visões que a cultura nos tem legado sobre o tema, da Grécia antiga até os nossos tempos. Na contemporaneidade, a ideia de Felicidade é marcada por noções hedonistas que consideram que o desconforto, o sofrimento, devem ser banidos em nome de uma Felicidade a ser alcançada a qualquer preço. Sofremos porque não conseguimos ser felizes de acordo com o que se propaga ser a verdadeira felicidade. O que antes era um projeto do Id, hoje se torna um projeto do Superego. Como decorrência, surgem esforços para engajar a psicanálise na luta pela ausência do sofrimento. Uma proposta hedonista de trabalho se oferece como desafio para o método psicanalítico. Corre-se, então, o risco de desnaturar a psicanálise e transformá-la num objeto de consumo para alcançar uma Felicidade utópica baseada na analgesia.

Palavras-chave: Felicidade; Psicanálise e cultura; Hedonismo; Contemporaneidade; Cura.

RESUMEN

El tema de este trabajo es la Felicidad. Se trata de un asunto abordado directamente por Freud, pero que en la actualidad parece haber desaparecido de la literatura psicoanalítica y de las preocupaciones de los pensadores de manera general. La cuestión de la Felicidad ha correspondido a nociones diferentes a través de los tiempos. Asimismo, ha reflejado la cultura vigente en cada época. El presente trabajo se inicia con un rastreo de las varias visiones que la cultura nos ha legado sobre el tema, desde la Grecia antigua hasta nuestros días. Contemporáneamente, la idea de Felicidad está marcada por nociones hedonistas, que consideran que la incomodidad y el sufrimiento deben proscribirse para alcanzar una Felicidad a cualquier costo. Sufrimos porque no logramos ser felices de acuerdo a lo que se propaga como verdadera felicidad. Lo que antes era un proyecto del Id hoy en día se ha tornado un proyecto del Superego. Como consecuencia, surgen esfuerzos para comprometer al psicoanálisis en la lucha por la ausencia de sufrimiento. Como reto para el método psicoanalítico, se ofrece una propuesta hedonista de trabajo. Esto conlleva el riesgo de que el psicoanálisis se desnaturalice y que se transforme en un objeto de consumo para alcanzar una Felicidad utópica basada en la analgesia.

Palabras clave: Felicidad; Cultura y psicoanálisis; Hedonismo; Contemporaneidad; Cura.

ABSTRACT

The subject of this work is Happiness. This subject has already approached by Freud. However, nowadays, it seems to have vanish from psychoanalytical literature and from the concern of thinkers, in general. Many different notions have been attributed to the question of Happiness through the years and they reflect the culture of the times. At the present time, the idea of Happiness carries hedonist notions that end up by considering that uneasiness and suffering must be banished in the name of Happiness to be attained at any cost. Consequently, new efforts appear to engage psychoanalysis in the fight for the banishment of suffering. Therefore, we are at risk of disqualifying psychoanalysis and transforming it in consumer’s goods.

Keywords: Happiness; Psychoanalysis and culture; Hedonism; Contemporaneity; Cure.

Velho Tema I

“Essa felicidade que supomos
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos”
(Vicente de Carvalho-1866-1924)
Embora este texto tenha por epígrafe uma poesia, ele é uma abordagem estritamente psicanalítica do tema “Felicidade”. Poesia, literatura em geral, artes várias, religião e filosofia são campos expressivos da cultura onde encontramos os sinais da preocupação humana em torno dessa questão. Pretendo utilizar a expressividade desses campos para discorrer psicanaliticamente sobre ela.
Como projeto humano individual, a ideia de felicidade é tão constante e transparente que até parece dispensar explicações mais profundas. Quase todo mundo sabe imaginar um quadro pessoal da felicidade que almeja. Como projeto de uma cultura, também a ela não faltam intérpretes privilegiados e pretensiosos que se dediquem a delinear seu contorno e condições de possibilidade.
Embora pareça, a princípio, uma noção de senso comum, a felicidade é uma questão que comporta delineamentos ambíguos que tornam sua expressão até controvertida. Um dos aspectos dessa ambiguidade foi expresso pelo poeta, na epígrafe acima. Ou seja, a felicidade, transferida por nós mesmos para um território utópico, nunca chega a nos pertencer. Existe maior tragédia do que esse desencontro provocado por nós mesmos? Todavia, continuamos a falar em sermos felizes. Essa noção, arraigada em nossos corações e mentes, talvez flua daquele espaço que Bion (1963) chamava das pré-concepções. A felicidade seria uma pré-concepção que, a caminho de se tornar concepção, mediante uma experiência, sofre descaminhos imprevisíveis. E ficamos órfãos de uma condição que, na verdade, nunca experimentamos de forma estável e, muito menos, em plenitude.
Freud (1930/1976) se ocupou diretamente e, de forma exaustiva, do tema da felicidade, em seu texto, “O mal-estar na civilização”. Segundo MacMahon (2006), o título original que Freud pretendeu dar àquele texto era: A infelicidade na cultura (Das Ungluck in der Kultur), o que seria uma denominação bem mais contundente que aquela oficializada posteriormente. Ele afirmava que a busca da felicidade era inerente ao ser humano. Há exigências pulsionais que levam o homem a almejar a felicidade, procurando sensações de prazer e, ao mesmo tempo, evitando a dor, o desprazer. Acontece, porém, que há um antagonismo entre essas exigências pulsionais (ligadas ao Princípio do Prazer) e as restrições impostas pela civilização para que o convívio entre as pessoas seja, pelo menos, razoável. Desse antagonismo, emerge a culpa e, num ser culpado, o projeto de ser feliz, em termos pulsionais, está comprometido. E Freud (idem) explicita por que: … o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa (p. 158). Em outro trecho, ele diz, sem meias-palavras: O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado plenamente (p. 102). No entanto, sua atitude não era de desprezo para com os esforços humanos nesse sentido. Logo adiante, na mesma linha citada, ele prossegue: contudo, não devemos – na verdade, não podemos – abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra. O enfrentar esse desafio, ou esse paradoxo, trágico em sua consecução, contém um tom de altivez, heroísmo e não resignação, muito do agrado do fundador da psicanálise.
Não obstante, nós psicanalistas continuamos a ser procurados por pessoas que pretendem o alívio de suas dores, ou o afastamento do desprazer que sentem, na expectativa de desfrutar da felicidade. Felicidade que cada um tenta formular à sua maneira, conforme suas fantasias. Sabemos também que a petição de ser feliz pode ser a manifestação de um sintoma. Na malha desse sintoma, poderemos, com o trabalho, identificar conflitos, recalques, culpas, fantasias etc. Enfim, sempre atrás de um sofrimento, vamos encontrar um Ego tentando conciliar dois funcionamentos mentais: o do Princípio do Prazer e o da Realidade.
Será que temos mais alguma coisa a aprender acerca do sofrimento humano? Existem características específicas desse modo in-feliz do viver humano, que trazem marcas da cultura contemporânea? E a psicanálise diante desse quadro? O que ela pode fazer pelas pessoas que buscam, no divã, obter uma senda para a felicidade? São essas as questões que tentarei abordar.

A felicidade tem uma história

Seria ingenuidade pensar que, em todos os tempos, em todas as culturas, a noção de felicidade sempre foi a mesma. Ingenuidade seria, também, pensar que, ao longo dos tempos, as pessoas se ocuparam dessa questão com a mesma ênfase que hoje é dada a ela. Podemos desenvolver uma “História da felicidade”, mediante a qual notamos que essa noção vai encontrando/criando identidades próprias para se expressar.
Até alguns séculos passados, os filósofos se ocuparam, em maior ou menor extensão e profundidade, em discorrer sobre a felicidade. Hoje, parece que eles se cansaram desse objetivo (não por esgotamento do assunto, é claro) e se voltaram para as intrincadas questões da linguagem, ou para os rigores da epistemologia. Talvez a pós-modernidade tenha contribuído para essa situação, ao relegar para o baú do romantismo esse tema considerado demodé. Esse vácuo de interesse e inspiração sobre a temática, foi logo percebido por algumas pessoas que o ocuparam com uma abundante produção de manuais de autoajuda, de estímulos, com o intuito de alcançar felicidade e de obter “chaves” para um acesso rápido ao paraíso. Num plano de maior seriedade e de não oportunismo, ainda nos resta a esperança de que os poetas, como o que citei, possam nos sinalizar novas intuições válidas a respeito.
Recentemente, MacMahon, já citado, um professor de Filosofia americano, escreveu um livro sobre a Felicidade, no qual procura descrever como, no decurso da história, foram se articulando vários discursos sobre o tema, cada qual com um matiz próprio, delineando feições diferentes para o que, de forma genérica, temos chamado de Felicidade. Remeto os leitores a esse agradável texto e, de suas ideias principais, vou fazer um apanhado bastante sucinto.
MacMahon deixa claro, logo de início, que a noção que se tinha sobre a felicidade, na antiguidade, diferia muito da que temos atualmente. Para os antigos gregos, a felicidade era um dom dos deuses, não vinha por mérito das pessoas, mas por lance de sorte ou destino. Não haveria interferência humana no encontro com esse bem, que estaria, portanto, fora de nosso controle. Já na Grécia Clássica, a questão se torna diferente. A felicidade é retirada do território dos deuses e colocada nas mãos dos homens, embora não houvesse a ilusão de que fosse fácil alcançá-la. Essa posição parece estar contida nas ideias de Sócrates, Platão e Aristóteles. Esses autores viam a felicidade como compilação de muitas qualidades vividas, entre elas, a virtude. O homem virtuoso podia ser feliz, mas essa condição só poderia ser avaliada após sua morte. Nesse ponto, fica inserido o fator racional na posse da felicidade. A virtude organizaria as vidas de acordo com uma ordem preestabelecida e, por essa correspondência racional, surgiria a felicidade.
O tema da felicidade é central no Cristianismo, mas tratado como um bem perdido por conta do pecado original. Pior do que uma não-felicidade é uma felicidade perdida por um ato culposo. Aqui, felicidade e tragédia se articulam: nossa incapacidade de ser feliz é lembrete amargo de uma falha (o pecado original), cujas marcas carregamos. Mas a esperança de felicidade é reintroduzida pelo próprio Deus ofendido, que oferece aos homens a graça de apagar essa marca; todavia, essa promessa anuncia, não propriamente a felicidade, mas uma “esperança de felicidade” a ser vivida num outro Reino. Quanto à felicidade aqui, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino a viam como possível, porém imperfeitamente realizável. Com essa postura, parece que o Cristianismo realizava uma ponte, ou conciliação, entre aquelas duas posições mencionadas a propósito dos pensadores gregos daquelas duas diferentes épocas: a felicidade (destinada a todos os homens) era unicamente possível como dom de Deus, mas exigia também uma contraparte virtuosa (ética) no homem.
Mas voltando à questão da virtude: seria ela um dom entregue aos homens em condições prévias de viabilidade, ou só seria provável pelo esforço humano de cultivá-la? Essa discórdia esteve no âmago do movimento que culminou na Reforma Protestante. Para Lutero, somos justificados pela Fé, ou seja, tornamo-nos justos, não punidos com a justiça, por um dom de Deus. O homem justificado deveria ser alegre, pois viveria em harmonia com a natureza que lhe fora atribuída por Deus. Com essa colocação atacou o lugar privilegiado do sofrimento na tradição cristã. Se inevitável, o sofrimento não era a chave perfeita para a salvação. Com Calvino, essa questão do sofrimento é deslocada mais ainda para uma situação lateral, mas sua afirmação de que há poucas pessoas predestinadas a serem salvas pela Graça, não deixa de incomodar. A Graça é uma chave, mas não para todos. Dizia ele: Quando a bondade de Deus sopra sobre nós, não há nada (…) que não nos leve à felicidade.
Conclui-se daí que pessoas felizes expressam em sua felicidade o dom da graça recebido. Enfim, a alegria, o bem-estar poderiam ser tratados como indicativos do favorecimento divino. Essa correlação imediatista foi bem recebida na América do Norte, por exemplo, onde cidadãos passaram a se dedicar com paixão ao trabalho, à acumulação de riquezas, ao bem-estar, como maneira de se certificarem (e mostrarem aos outros) que tinham sido favorecidos de maneira especial por Deus.

Com o Iluminismo (séculos XVII e XVIII), a questão da felicidade sofre uma dupla virada. Não é mais um valor tutelado pelos deuses e nem uma promessa para outra vida. Ela não só era uma aspiração humana legítima, mas igualmente uma condição a ser obtida nesta vida. Mais ainda: a felicidade consiste em um direito de todos, um bem básico. Maximizar o prazer e minimizar a dor era meta iluminista. A ampla iconografia da época dá testemunho dessa procura; no entanto, seria simplismo reduzir todo o conteúdo da mensagem do século das Luzes a essa fórmula. A penetração de tais ideias se deu em todos os quadrantes da cultura. A felicidade, emancipada de expectativas divinas, passou a ser uma questão social e de cidadania, preservada pelo Estado. Foi na linha desse ideário que a Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776), redigida por Thomas Jefferson, assinalava que todos os homens foram dotados por seu criador de direitos inalienáveis, entre eles: a vida, a liberdade e a busca da felicidade. A Revolução Francesa, em sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) prometia lutar pela felicidade de todos. Mas o vigor revolucionário acrescentava que essa promessa demandava esforço, trabalho e uma atuação em escala organizada.
O Movimento Romântico, embora pródigo em focalizar o sofrimento humano, nunca deixou de lado o interesse pela felicidade. Este tema aparece, muitas vezes, tratado como Alegria, embora com um sentido próprio: é o contraponto do desespero e, muitas vezes, sua irmã siamesa. A Alegria viria da capacidade de o homem se conectar com ordens superiores, como o Espírito, o Ser, o Infinito etc. A Ode à Alegria, de Beethoven, é uma visão desse contato.
Com o marxismo, a questão da Liberdade se coloca na linha de frente das preocupações. A Felicidade não é uma meta, mas a consequência dos homens se libertarem de suas alienações. A alienação consistiria num desejo individual falsamente construído por um sistema artificial de necessidades, colocando as pessoas em conflitos com um bem coletivo. Mas a desalienação só poderia ocorrer por meio de uma luta revolucionária para transformar a sociedade e superar as condições alienantes do trabalho que separa as pessoas de sua natureza e umas das outras. Resultaria, então, um estado de liberdade, sem imposições das divisões de classe. Podemos entrever uma promessa religiosa nessa proposta: o fim da alienação (as marcas do pecado original?), dos conflitos entre os homens e do retorno do homem a si mesmo. Uma felicidade humana real, uma promessa metafísica?
E agora?
A busca continua. Trágica como antes, porque frequentemente cai na decepção. Somos mais felizes hoje do que antigamente, com todos os progressos materiais e tecnológicos de que dispomos? O incrível aumento das expectativas de vida que nos asseguram que poderemos viver mais anos que nossos antepassados incrementa nossa felicidade? Há pesquisas feitas que tentaram quantificar, em alguns países, a dose de bem-estar proporcionada pela situação socioeconômica das pessoas. O resultado apontou o seguinte: até certo patamar de prosperidade econômica e organização dos sistemas sociais, os índices de bem-estar autodeclarados parece que aumentam. Mas somente até certo patamar. A partir daí, crescendo a prosperidade, não cresce a sensação de bem-estar. Tudo indica que passa a haver um menor retorno em termos de felicidade. No presente, tendo, como Prometeu, se apossado do fogo dos deuses e desenvolvido um progresso intelectual, material e social em escala sem precedentes, o homem parece ainda insatisfeito. Já em 1930, Freud assinalava que: No interesse de nossa investigação, contudo, não esqueceremos que atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de semelhante de Deus (p. 112).
Aqui, em vez de tentar mapear índices de bem-estar contemporâneo, proponho-me fazer uma operação inversa. Que fatores culturais condicionam, hoje, o mal-estar que detectamos de forma generalizada? Omitirei, por não caber neste estudo, aquelas situaçõeslimite, de carência, em que vive grande parte da humanidade.
O hedonismo moderno: uma arma trágica de dois gumes
Indubitavelmente, vivemos em uma época na qual a promessa de felicidade, agora separada de suas conotações com o sagrado, estaria no final da trilha de um comportamento que chamaríamos de hedonista. O hedonismo não é invenção moderna. E pode ter tido, ao longo da história, várias versões. O emprego dessa palavra exige que se exponham as configurações com que ela se apresenta neste texto.
Em termos genéricos, poderíamos dizer que o hedonismo que se nos apresenta hoje em dia propõe extrair da liberdade individual o máximo de prazer disponível, o que seria o equivalente a ser feliz. Emprego o termo disponível para sinalizar a possibilidade de consumo de todas as benesses que o progresso tecnológico nos põe à disposição. Quanto mais pudermos consumir, mais seremos felizes. Essa é a promessa embutida na crença propagada pelos meios de produção. Nesse sentido, até a psicanálise pode ser encarada como um bem a ser consumido nessa promessa de felicidade. Volto mais adiante à questão.
Essa proposta hedonista se insere dentro de uma arquitetura de “razões”, algumas explícitas, outras implícitas. É importante não só assinalá-las, como discutir suas consequências.
A primeira delas aponta não apenas que podemos ser felizes, mas que devemos ser felizes. Essa postura implica uma mudança radical em nossas estruturas psíquicas: o que antes era considerado de pertinência ao Id (a busca do prazer), passou a ser de pertinência ao Superego. Em outras palavras: estaremos condenados (à culpa) se não formos felizes. McMahon (2006) assinala que, em consequência, vivemos o fardo da infelicidade de não sermos felizes. E pagamos o preço de tal pensamento com sofrimento.
A segunda “razão” formula, generosamente, em termos explícitos, as trilhas e as atitudes que todas as pessoas devem adotar para chegarem “lá”. O que fica implícito (ou oculto) na proposta, é a contradição nela embutida: que a decantada liberdade individual na escolha dos prazeres fica tolhida, quando não negada, pelo fato de se imporem às pessoas padrões de consecução de prazer. Exemplos: a mulher feliz é a que…; o homem de sucesso é aquele que…; a mulher liberada sexualmente é a que…; o jovem moderno é aquele que... etc. Um livro de autoajuda, recentemente publicado no Brasil apresenta, em um folheto promocional, a promessa de mais de cem mensagens para você superar seus medos, solucionar seus problemas, alcançar o sucesso e mudar radicalmente sua vida. A obrigação de ser feliz é também condicionada à posse de um corpo cujas características estéticas estão determinadas, a priori, por padrões preestabelecidos. Quem não se enquadrar nesse padrão, trate de alcançá-lo, senão… Essa situação, extremamente desconfortável, quando não frustradora, ficou evidenciada numa recente pesquisa (2007) da Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil), que estudou os índices de satisfação com o próprio corpo, numa amostra que incluía crianças e adolescentes dos dois sexos. No universo pesquisado, 62% dos entrevistados se disseram insatisfeitos com seus corpos. Estamos aqui em plena vigência de outra contradição: os mesmos modelos ofertados para se alcançar uma felicidade padronizada, idealizada, acabam arrastando a pessoa para frustração, culpa e sensação de exclusão do paraíso.
O terceiro aspecto da arquitetura mencionada diz respeito à noção de prazer à qual ela se direciona. Esse prazer não decorre do exercício das virtudes, como os gregos queriam, mas da capacidade de ter sensações prazerosas. Isso implica a primazia do prazer sensorial, aquele proporcionado pelos sentidos que o corpo abriga. Vivemos um império dos sentidos, uma busca de sensações, que acaba minimizando o valor de se viverem afetos, emoções mais enraizadas em trocas afetivas com os outros. Na esteira dessa procura, podemos apontar a exaltação que se faz do impulso para se buscar experiências novas, enfrentar desafios e, muitas vezes, viver situações de perigo, nos limites de risco de vida. Aqui, Tânatos é convocado, junto a Eros, para a vitória final dos sentidos. Gostaria também de citar a convocação da sexualidade, em sua vertente predominantemente orgástica, para se juntar a essa onda sensorial.
A consequência de todas essas propostas conduz a um traço que me parece ser marcante nas culturas próximas a nós e em nós mesmos. Vivemos em uma cultura da analgesia. A procura de prazer cria projetos explícitos, não de se minimizar a dor, mas de se abolir a dor em todos os níveis em que ela possa aparecer. Talvez nunca a intolerância à dor tenha sido tão evidente. E o curioso: a dor é “atacada” numa perspectiva de ação religiosa, como um ato de exorcismo com o qual as pessoas tentam se defender das forças demoníacas que as assaltam.
Até aqui apontei as tentativas de defesa contra a dor, que são feitas individualmente; entretanto, a questão não se esgota nesse plano individual. Recursos mais amplos são convocados para o mesmo fim.
A medicina convocada
Talvez nenhuma outra área do conhecimento humano, a não ser a Medicina, seja depositária de tantas expectativas para se anular a dor, seja ela física ou moral. A nosso olhar atual, até parece natural essa expectativa de anulação da dor por parte da Medicina e nem sequer cogitamos se esta sempre foi direcionada a esse propósito. Na realidade, nem sempre foi assim.
Illich (1976) numa obra polêmica – A expropriação da saúde – aponta que a colocação da “doença” no centro do sistema médico é de época recente e remonta aos tempos de Galileu. A objetivação do sofrimento por sua transformação em entidade clínica manipulável revolucionou a noção anterior de doença que a colocava como sofrimento experimentado por um ser e implicou mudança da Medicina comparável à revolução copérnica na astronomia: o homem, a pessoa, deixava de ser o centro de seu universo para ser colocado em sua periferia. Durante séculos, na cultura ocidental, a atenção médica era focada na pessoa como um todo, sem discriminação de corpo e mente. A Medicina Hipocrática, por exemplo, visava ao restabelecimento da harmonia, sem que o objetivo da intervenção médica fosse, diretamente, a supressão da dor. Entre outras razões, era porque a dor, concebida como a experiência da alma presente no corpo inteiro, não podia ser objetivada num mal determinado. Era a pessoa que sofria e, não apenas, seu corpo.
A luta da Medicina contra a dor se inicia como consequência das ideias de Descartes, até que, no fim do século XIX, a dor aparece emancipada de todo referencial metafísico. A “virada” da Medicina rumo à analgesia (em sentido amplo) reflete uma reavaliação ideológica da dor. Sua eliminação passa a definir a própria Medicina, respondendo a um mandato conferido pela angústia central da cultura, em sua procura hedonista. O desejo terapêutico passa a ser substituído pelo furor curandi. É aqui que Illich denuncia o fenômeno (pouco percebido) da Expropriação da saúde: gerenciando a vida humana em todas as faixas etárias e em todas as situações críticas existenciais (desde um parto até um momento de angústia), a Medicina acaba se transformando na guardiã do paraíso desejável da analgesia. Esse fato se reflete inequivocamente na formação do médico atual: ela é voltada, predominantemente, a equipá-lo, técnica e pessoalmente, a ampliar sua capacidade de objetivação da dor. Este controle da mesma, mediante os dados sensoriais, tem sido o responsável por uma deformação que leva o médico a traduzir a linguagem da dor em termos fisiopatológicos precisos, mas não o conduz a compreender o sofrimento vivido por quem é o seu portador (Mello Franco Filho, 1977). A medicalização progressiva da dor e da morte, ilustra a luta do homem pelo exorcismo do sofrimento na trajetória de sua vida. Numa sociedade industrial cujo mais alto valor de consumo é o bem-estar, quaisquer recursos podem ser convocados para essa luta.
A convocação da psicanálise
Freud era médico e, como médico, debruçou-se, no início, sobre o problema das neuroses. O nascimento da psicanálise no contato com a questão das neuroses parece ter alimentado a ideia de filiação permanente da mesma à Medicina. Aliás, parte da terminologia que ainda hoje usamos para descrever aspectos do processo analítico, advêm da clínica médica; termos como: paciente, clínica, tratamento, cura, alta etc., ainda hoje circulam na fala dos próprios analistas. Por essas aproximações históricas e terminológicas, a psicanálise se viu identificada a um procedimento médico e, hoje, quando a sociedade cobra resultados da psicanálise, o faz sob a perspectiva de que a mesma constitui parte do arsenal médico para combate às doenças mentais. A propósito da noção de doença mental, cumpre lembrar que a mesma possui um embasamento ideológico e que o comportamento humano tomado numa perspectiva de doença se oferece como objeto de manipulação por uma escala de valores sociais que nada têm a ver com ciência (Mello Franco Filho, 1977). Colocar a psicanálise na esteira da cura das neuroses para obtenção de uma felicidade coletiva, é atribuir a ela um papel nessa manipulação ideológica. A Freud (1930/1976), não escapou a falácia de tal proposta e suas consequências. A esse respeito ele foi categórico:
Uma dissecação psicanalítica de tais neuroses poderia levar a recomendações terapêuticas passíveis de reivindicarem um grande interesse prático. Eu não diria que uma tentativa desse tipo de transportar a psicanálise para a comunidade cultural seja absurda ou esteja fadada a ser infrutífera. Mas teríamos de ser muito cautelosos e não esquecer que, em suma, estamos lidando apenas com analogias e que é perigoso, não somente para os homens, mas também para os conceitos, arrancá-los da esfera em que se originaram e se desenvolveram. (p. 169)
Seria pretensioso demais tentar “curar a psicanálise” de tendências (quaisquer que sejam) que parecessem estranhas à sua natureza. A psicanálise não é um conjunto de ideias, mas uma práxis que depende essencialmente das pessoas que, nela, estão envolvidas. Creio, também, que não se trata de consagrar um modelo psicanalítico como o mais ortodoxo. Minha advertência é no sentido de, nós psicanalistas, não cedermos à tentação de encaixar a atividade psicanalítica neste ou naquele modelo de moda.
Encontrei um artigo do filósofo esloveno Zizek (2003), cujo título e conteúdo me sugeriram conexões interessantes para a compreensão do desafio lançado à criação de uma “Psicanálise contemporânea”, atenta às “demandas” atuais. Zizek comenta que hoje vivemos uma situação de hedonismo envergonhado que tenta conciliar a posse de um prazer, mas sem passar pelo constrangimento que se tem pelos aspectos não prazerosos (nocivos) que fazem parte da essência desse prazer. Diz o autor: No mercado de hoje, encontramos toda uma série de produtos desprovidos de suas propriedades nocivas: café sem cafeína, creme sem gordura, cerveja sem álcool… (p. 3). Ele ainda acrescenta: sexo virtual, como sendo sexo sem sexo, guerra sem mortes (de nosso lado, evidentemente), política sem “política” etc. Esta combinação de prazer com constrangimento nada tem a ver com a antiga noção de “medida certa”. A que discuto opera na crença de obter com que nossa procura de prazer não tenha a marca da transgressão, com suas consequências de desprazer e culpa. Enfim: vale a transgressão, desde que não pareça transgressão. E sugere ser esta a atitude do Último Homem hedonista de hoje: tudo é permitido, pode-se desfrutar de tudo, porém desprovido da substância perigosa (p. 3). Caminha-se para a criação e consumo do ópio sem ópio.
Considerações finais
Volto agora ao tema que motivou este trabalho: a Felicidade. Embora nós psicanalistas possamos ser cautelosos em relação às demandas de felicidade formuladas, direta ou indiretamente por nossos pacientes, não podemos nos negar a considerar essa questão, à medida que ela é uma motivação central para a procura de análise por parte dos que são portadores de algum sofrimento psíquico.
As demandas dos que se sentem excluídos da felicidade podem conduzir às mais variadas procuras: ciência, medicina, magia, religiões e terapias psicológicas de várias naturezas. Cada uma delas equaciona seus recursos aos fins desejados. Encarada em sua versão mais divulgada – a vertente terapêutica – a psicanálise também é alvo dessa procura. E aqui entramos no plano clínico da questão de que nos ocupamos.
Nós, analistas, motivamo-nos ao trabalho pelo desejo de conhecer e ajudar as pessoas. Pelo menos, conscientemente, é o que se passa em nosso interior. Um acordo estabelecido entre analisando e analista inicia o processo. Sua trajetória, porém, está permeada de conflitos e armadilhas para ambos. Tanto as motivações do analisando para fazer análise quanto as motivações do analista para funcionar como analista, podem ser colocadas em questão durante uma análise. Uma ou mais crises se instalam. Muitas vezes o paciente reclama da ausência de efeitos sensíveis, da demora, do custo e… da ineficiência da análise para “resolver” seus problemas. Essas demandas podem servir de “convite” para que o analista entre na trajetória de uma psicanálise descafeinada, como chamei, mesmo porque ninguém gosta de “perder um paciente”.
Em relação ao sofrimento, a análise nunca poderá “garantir” ao paciente a “extração” de suas dores, nem a prevenção de sofrimentos futuros. Estamos aqui no plano de uma crença: a tentadora ideia de uma psicanálise segura, criada na mesma trilha mencionada por Zizek, do sexo seguro: a falácia de que todos os efeitos dos atos humanos podem ser previstos e evitados. No caso da sexualidade, seria uma sexualidade isenta dos conflitos que a permeiam, os quais, sabemos, são os elementos básicos que encaminham a estruturação de nossa personalidade. O sexo seguro surge também como um competidor do chocolate laxante, ou do almejado ópio sem ópio.
Freud, em sua clínica, ou em seus escritos sobre a cultura, não deixou de mencionar e lidar com esses conflitos – em torno da questão sofrimento/felicidade – que podem surgir entre a psicanálise e a cultura em que ela é praticada. Uma mostra significativa de sua posição frente às perspectivas da psicanálise poder tornar “feliz” um paciente está nas considerações com que encerra a descrição e discussão dos famosos “Estudos sobre a Histeria” (em colaboração com Breuer) (1893/1976). A questão central ali inserida é sobre a ajuda que o analista pode oferecer ao paciente diante das circunstâncias e fatos da vida que o colocaram em sofrimento. Freud exemplifica sua posição clínica por meio de um diálogo hipotético com um desses pacientes. A resposta é apresentada nos seguintes termos:
Sem dúvida o destino acharia mais fácil do que eu aliviá-lo de sua doença. Mas você poderá convencer-se de que ganharemos muito se conseguirmos transformar seu sofrimento histérico em infelicidade comum (o grifo é meu). Com uma vida mental que foi restaurada, transformandose em saúde, você ficará melhor armado contra essa infelicidade. (p. 363)
Percebe-se que a fala do criador da psicanálise, não é apenas uma resposta técnica a uma situação de demanda de um paciente. Vai além disso: é um posicionamento ético de um analista que respeita, simultaneamente, o paciente e seu campo de trabalho.
Podemos não ter garantia nenhuma do final feliz de uma análise. Mas podemos nos capacitar (mediante nossa análise pessoal e nossa formação) para lidar eticamente com os dilemas que vamos encontrando ao longo desse difícil caminho de adentrar no sofrimento humano e em suas vicissitudes.

Referências
Bion, W. R. (1991). Elementos em psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1963). [ Links ]
Freud, S. (1976). Estudos sobre a histeria. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 2. Trad. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1893) [ Links ]
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Illich, I. (1976). A expropriação da saúde. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. [ Links ]
MacMahon, D. M. (2006). Felicidade: uma história. São Paulo: Globo. [ Links ]
Mello Franco Filho, O. (1977). Psicanálise e medicina: um confronto. Revista Brasileira de Psicanálise, 11(2), 155-170. [ Links ]
Zizek, S. (2003). O hedonismo envergonhado. Folha de S. Paulo, São Paulo, Caderno Mais!, 19/10/2003. [ Links ]
Odilon de Mello Franco Filho
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