UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Colóquio de Pós-Graduação de Ciência da Literatura
12 e 13 de novembro de 2003
O INTELECTUAL NAS VEREDAS DA ORALIDADE
Cléa Corrêa de Mello (Doutoranda em Literatura Comparada)
Resumo Mapeamento dos circuitos semânticos que configuram Guimarães Rosa como intelectual público. Estudo das declarações e interferências do escritor na cena político-cultural e análise da contínua distensão quanto a expectativas de engajamento mais explícito.
Palavras chave Guimarães Rosa, intelectual, engajamento
Entre as raras entrevistas de Guimarães Rosa, a de 1965, concedida em Gênova a Günter Lorenz, por ocasião do Congresso de Escritores Latino-Americanos, é uma das escassas oportunidades, fora do espectro ficcional, para que os estudiosos de sua obra sejam confrontados com reflexões e conceitos do ficcionista a respeito dos vínculos entre literatura e engajamento ou, ainda, sobre o papel do intelectual. Na ocasião, Lorenz inicia o diálogo inquirindo-o, justamente, sobre o provável desinteresse quanto ao tema político:
Ontem, quando escritores participantes deste Congresso debatiam sobre a política em geral e o compromisso político do escritor, você, João Guimarães Rosa, político, diplomata e escritor brasileiro, abandonou a sala. Embora sua saída não tenha sido demonstrativa, pela expressão de seu rosto e pelas observações que fez, podia-se deduzir que o tema em questão não era de seu agrado. (ROSA, Apud COUTINHO, 1983, p. 62-63)
Tentando esclarecer um ponto de vista que aponta para as irredutibilidades entre o espaço da política stricto sensu e a esfera do intelectual crítico, tanto quanto para a necessidade de assunção de responsabilidades de cunho humanístico, Rosa replica, demonstrando, nesta e em outras etapas da conversa, a consistência do seu desafio ao conceito de engajamento então predominante entre os produtores literários:
Embora eu veja o escritor como um homem que assume uma grande responsabilidade, creio entretanto, que não deveria se ocupar de política; não desta forma de política. Sua missão é muito mais importante: é o próprio homem. (Ibidem, p. 62-63)
Portanto, Rosa enunciava, com clareza, a consciência de que sua opinião destoava do pensamento hegemônico, e divergia da conjuntura que tendia a privilegiar, ou, pelo menos, a conferir maior visibilidade aos artistas atuantes: aqueles que demonstravam prontidão para emitir juízos de caráter geral e para intervir em debates sócio-políticos, fora da arena de suas práticas expressivas. Simultaneamente refutando o papel de político que lhe imputara Lorenz e descrevendo-se como escritor comprometido com fundamentos humanistas, o autor de Corpo de baile expressa com veemência suas incompatibilidades com o âmbito da política, na qual verifica charlatanices e desumanidades.
Mais adiante no colóquio com Günter Lorenz, Rosa comenta suas identidades. Algumas óbvias, como as de escritor e diplomata, além de outra, a de vaqueiro, que parece se coadunar com o empenho na construção da imagem pública de escritor afeito ao universo narrado. Neste sentido, considerar-se vaqueiro implica agregar, aos textos literários, um teor de legitimidade, porquanto a experiência de vida do autor conferiria modulação autêntica ao universo narrado. Ou seja, os leitores estariam diante de material ficcional sim, porém chancelado pelo critério de autoridade acionado, intermitentemente, pelo próprio escritor que propala, através dos poucos depoimentos, da farta correspondência, e de sugestivo material iconográfico, a condição com a qual se identifica: a de vaqueiro sertanejo.
Diante disso, tanto quanto as parcas entrevistas, também o ensaio fotográfico de autoria de Eugênio Silva, para a reportagem publicada na revista O Cruzeiro, em 21 de junho de 1952, mostrando Guimarães Rosa em pleno sertão - selando a montaria, cavalgando, bebendo de coité, acendendo cigarro de palha com a brasa de uma fogueira, ou envergando casaco e chapéu de couro - colabora para que se forjem constelações de semiologias relativas ao mundo sertanejo importantes no estabelecimento dos vetores de padrão receptivo da sua escritura. Estas referências seriam responsáveis por encaminhar o trânsito de sentidos entre obra e público, e confluiriam para produzir a sintonia autor/matéria narrada, e para neutralizar interpretações desvinculadas da abordagem empática, pelo escritor, do universo que informa sua literatura.
Como resultante, em mais de uma oportunidade, os agentes literários se mostraram sensíveis ao apelo e ao potencial de veiculação da imagem pública de um ficcionista que se desdobra, com segurança, no seu duplo: o vaqueiro. Deste modo, e, talvez, avaliando como oportuno para o mercado europeu, divulgar a obra de Guimarães Rosa como a de um escritor que representa esteticamente uma realidade na qual viveu/vivia (e aí a ambigüidade seria capitalizada pela empresa), a editora italiana Feltrinelli escolhe como capa para a versão de Corpo di ballo, de 1964, uma das fotos de Eugênio Silva, onde Rosa aparece a cavalo, conduzindo um rebanho pela extensa paisagem que se prolonga a sua frente.
É como se, prontamente, fossem estabelecidos os termos do pacto de leitura sob o qual é garantido ao receptor estrangeiro um produto genuíno. A intimidade do artista com a mundividência sertaneja abona a fatura literária, afastando o temor da contrafação. Trata-se, pois, curiosa e paradoxalmente, de matéria ficcional sendo vendida com o respaldo máximo e a propaganda do vínculo estreito e atestável com a realidade. O propósito deliberado do escritor de colaborar de forma operosa na plena divulgação de seus textos além de demonstrar a precariedade e amadorismo do processo editorial brasileiro (a esta altura dependente em larga escala de que o próprio autor se responsabilizasse pela ativação de vínculos sociais indispensáveis para melhor difundir sua literatura), evidencia, o esforço consciente de Rosa, devotado ao reconhecimento e valorização da obra que produzia. É assim que encontramos, numa carta, datada de 17 de janeiro de 1946, expressões consumadas da diligência rosiana em promover Sagarana. Chama a atenção, inclusive, o meticulosa sensibilidade quanto ao planejamento do timing publicitário:
A turma daqui já está fichada; até agora, impedi, ferozmente, qualquer publicidade, para reservar todas as baterias à campanha de surpresa, depois do livro na rua. Barulhada prévia, seria contraproducente, cheirando a propaganda encomendada. Por isso recusei até entrevistas grandes, com fotografia /.../. (ROSA, Apud GUIMARÃES, 1972, p. 127)
De fato, estas e outras situações são exemplares quando se trata de estimar as repercussões das estratégias de gestão de Guimarães Rosa sobre a sua obra. E, afora o eficiente trabalho de bastidores, também alguns acontecimentos públicos reiteram a disciplinada aplicação do autor. De tal maneira que, no ano de 1952, Rosa é convidado por Assis Chateaubriand para, na condição de líder de vaqueiros, receber o Presidente Getúlio Vargas num gigantesco encontro de “encourados”, o que vinha a atestar o sucesso do projeto deliberado de aderir à imagem de escritor a figura do vaqueiro.
Analisar a dinâmica de negociações culturais ativadas nesta festividade significa reconhecer, de pronto, que Estado e imprensa avalizam o desempenho do diplomata/vaqueiro/escritor tanto quanto este(s) ajuda(m) aqueles poderes a reencenarem uma funcional coreografia apaziguadora que remeteria à contigüidade amistosa (desde que os vaqueiros se deixem comandar e abstraiam o fato e os motivos de não serem proprietários de terras) entre o campo intelectual e a vivência do trabalhador do sertão. Observemos a carta de Rosa ao pai, Florduardo, relatando o inusitado evento:
Em Caldas-do-Cipó, pude ver reunidos – espetáculo inédito, nos anais sertanejos e creio mesmo que em qualquer parte – cerca de 600 vaqueiros autênticos dos “encourados”: chapéu, guarda-peito, jaleco, gibão, calças, polainas, tudo de couro, couro de veado mateiro, cor de suçuarana. /.../ Fui com Assis Chateaubriand, que é o rei do (sic) entusiastas, e tive de vestir também o uniforme de couro e montar a cavalo (num esplêndido cavalo paraibano), formando na “guarda vaqueira” que foi ao campo de aviação receber o Presidente Getúlio Vargas. A mim coube “comandar” os vaqueiros de Soure e de Cipó (!). (ROSA, 1983, p. 171-173)
Se, para um Governo comprometido com o figurino nacionalista e às voltas com práticas demagógicas e com os rescaldos da agenda autoritária interessava dispor de um intelectual, expondo-o confortável no triplo papel de escritor, vaqueiro e funcionário da chancelaria, para Rosa, o espetáculo, que vem a ser cooptado pela imprensa e pelo Estado, representa outra importante instância de reconhecimento e de publicidade da sua produção no mundo das letras, tanto quanto os juízos positivos de renomados críticos, ou o considerável número de edições que Sagarana porventura viesse tendo.
Segundo a lógica deste mercado de bens simbólicos, o artista colabora produzindo uma arte, uma interferência no circuito cultural que, de acordo com a engenharia política, permite à nação conhecer-se, estreitando as relações entre o povo, tal qual o “teatro com vaqueiros” permitiu encenar. Performances, como a que Guimarães Rosa relata ao pai, para onde acorreram vaqueiros de vários Estados, reativam e atualizam séries de tradições inventadas, fundamentais no engendramento da comunidade nacional: o interior como matriz da cultura; a bravura do povo sertanejo; a cordialidade neutralizadora da potência reativa de uma população explorada.
O expediente da estetização da política identifica-se com o desígnio de representar a nação como algo imanente, onde determinadas características são tomadas enquanto atributos eternos, invulneráveis aos parâmetros contextuais. O fluxo destas narrativas performatizadas reelabora, continuamente, um patrimônio cultural intangível - dado o caráter evanescente do suporte - e voltado para edificar uma “comunidade imaginada” onde se implantam e se ratificam os discursos de conciliação nacional e da História como progresso civilizatório.
Logo, justo no momento em que o país expulsa com mais vigor os pobres do campo, em que recrudesce o processo de inchamento das cidades, em que os meios de comunicação de massa assimilam como pejo folclorizante a cultura sertaneja ou, ainda, em que os postulados políticos e as utopias de nacionalidade voltam-se para consolidar uma cultura homogênea e orgânica, um evento como este sinaliza, nos seus interstícios, a inteligibilidade, as fraturas e as demandas do imaginário da nação.
Ademais, a multiplicidade de atores sociais envolvidos (vaqueiros, jornalistas, chefe de Estado, intelectual), bem como o descompasso, o gigantismo e antinômico dos elementos cênicos (600 vaqueiros paramentados se deslocando a cavalo, para esperar o Presidente que chega de avião) fazem ressoar o travo extemporâneo e “pré-fabricado” da cerimônia em curso. Afinal, festa ou réquiem? A diversidade de propósitos que, contraditoriamente, fora capaz de reunir diferentes elementos do espectro social seria capaz de injetar estenia na verdadeira exumação de traços culturais ali em curso? Estas deveriam ser as perguntas a rondar as cabeças dos agentes responsáveis pela (re)construção da imagem do homem sertanejo, naquelas coordenadas espaço-temporais, como igualmente o foram outros representantes com função similar, ao longo dos três últimos séculos.
Em 1952, a atribulada história de parceria do Estado, da intelectualidade, da imprensa e do trabalhador rural, na modelagem das configurações do sertão e de seus habitantes, parece chegar, como o encontro de Caldas-do-Cipó o acusa, a uma encruzilhada. Sintomaticamente, até certo ponto, o fato de que a última atividade prevista - a vaquejada - tenha sido malsucedida condensa os augúrios dos novos tempos. Naquele momento, tanto quanto tentar reunir o gado tresmalhado, é preciso campear os rastros das promessas malogradas de uma modernidade. Pois, neste teatro a céu aberto, o fracasso do grand finale acaba por aludir às incômodas derivas que fundamentam a identidade nacional. Observemos o lamento de Rosa:
A vaquejada propriamente dita é que perdeu um pouco, porque o gado que estava apartado estourou durante a noite, e poucas reses puderam ser recuperadas; a maior parte delas escapou para muito longe, caíram no mundo, e, apesar de rastreadas por duas léguas, não puderam ser apanhadas. (Ibidem, p. 173)
Com efeito, vimos testemunhando nas duas últimas décadas, tanto nas reverberações da imagem pública do escritor Guimarães Rosa, como na sua fortuna crítica uma distensão na abordagem do aspecto político que se faz acompanhar por um zelo no resgate das suas respostas estéticas aos desafios históricos do seu país. Daí porque, pari passu à desqualificação do postulado do intelectual salvacionista, instala-se uma conjuntura propícia ao estímulo de análises da narrativa rosiana, que levem em conta as mediações da arte com a história, em termos que transcendam a simplificação excessiva com as quais a sua obra teve que se confrontar. E, como conseqüência, poderíamos constatar, na fortuna crítica de Guimarães Rosa, o incremento de uma dinâmica onde as perspectivas canônicas, até aqui concentradas tanto na valorização de um conceito de nacionalismo literário, mesquinhamente concebido, como na ênfase sobre o experimentalismo, e ainda no destaque das sugestões filosóficas e metafísicas, passa a dividir o perímetro interpretativo com exegeses que priorizam o potencial questionador do texto rosiano.
Deste modo, irrompem o cenário crítico interpretações que evidenciam a profunda solidariedade da sua escritura com as questões de ordem contextual - a vida numa determinada região do país - através de aspectos ficcionais que, longe do anseio de, necessariamente, ter de explicar ou de dar uma resposta, mostram, pela organização e pelo tratamento literário de seus elementos, a complexidade do que abordam.
As nuanças desta problemática se articulam, dialeticamente, através da sondagem extensa e intensa do material lingüístico disponível, o que permite ao leitor perceber as soluções de que se vale a narrativa para relativizar e complexificar a percepção do real. E, se num primeiro momento sua obra é identificada como um retrato - e como tal seguramente estático – da nação, descortinam-se, a partir de outras vertentes, oportunidades para que seja lida uma história alternativa, repleta de percalços, de contradições e de impasses.
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