23 de abril de 2020

RÁPIDA LEMBRANÇA DO MUNDO DOS FILETTI.*

Sob a cajarana era comum a chegada do reisado nos tempos de vó Carrola. Não sei ao certo a idade de minha bisavó e sei apenas que eu tinha uns seis anos. Lá morava Vó Mariquinha, matriarca pela linha patriarcal. A lembrança bem leve de Vó Carrola era sobre uma cadeira em frente à casa e por incrível que pareça a lembrança, não existia alpendre na casa, exceto uma pedra em forma de batente e degrau que vó Mariquinha usava logo após o almoço cuja sobremesa era uma cuia de farinha com rapadura a comer no referido batente sombreado que se avistava uma espirradeira e os coqueiros que nunca saíram da paisagem e se for lá agora, lá enxerga. A sombra da tarde coincidia com a casa construída numa posição tal que o sol em seu crepúsculo escondia-se a oferecer uma sombra fresca. Colaborava com esse cenário a cajarana florescente em posição que hoje fica a sala de minha residência. De forma sazonal, a cajarana tinha seus segredos como todas as plantas. Éramos obrigados a nos afastar pela chegada da lagarta de fogo. Meu filho Bruno conviveu o ano de 2018 nessa roça e descobriu que as lindas borboletas são as provocantes lagartas alimentadoras de folhas em uma fase da vida e, todos passam por fases e não importa o reino se animal ou vegetal. Não sei a data da chegada do reisado. Há uma certeza de cenário que, ao entardecer, como falara antes, Vó Carrola postava-se na cadeira e ao redor e nem sei das origens, enxergava umas vendedoras a chegar com bolinhos de ovos feito em formas pequenas e doces tipo cordão de balas enrolados em papel manteiga que mais tarde, morando numa das catorze casas que peregrinei com minha família, vi D. Marcolina a fazer as saudosas balas na Rua da Salgadeira em frente a D. Adalgisa. Hoje nem posso degustar tais balas e nem se se fabricam mais. Outro dia quando um cliente apareceu em meu trabalho e disse que tinha uma moagem de cana que não fazia mal a diabetes pude encomendar duas rapaduras e um melaço e daí que eu e mão moderadamente degustamos, não obstante, com receio e ressalvas. Um foguete aqui e outro acolá em espaços pausados dava o tom de que ali estaria a acontecer algo simples como a mentalidade cultural bucólica aceita. Não sei das lembranças de existência de cães. Havia um de nome Boto e era assim seu nome por entender que no tempo de lá atrás, dar nomes de peixes aos cachorros era sinal de que não ficaria azedo e em outras palavras, não contrairia a raiva que eu acho que nem era desse mal já que uma das características dessa doença é girar, girar e girar tipo, a sinomose que está frequente nos dias de hoje. Sei que era uma doença que o cachorro saia em disparada e linha reta pelos campos e cidade sem rumo nem rota definida até a chegada da morte e quando não naturalmente, de pauladas pelos que corriam atrás em gritos de cuidado com o cachorro azedo. Boto se foi e nem sei como. Ficou não só esta lembrança em mim. O grito de Tio Nelito em tons de caatinga no chamado de Boto, Booooto, ou boto, vem em mente como se fosse o momento de hoje. E lá vinha Boto sabendo que teria uma missão de pegar algo em forma dos restos de comida com fartura na quarta feira a tarde com a chegada de Tio Nelito do açougue ou pegar algum animal e que mudava a expressão para queu Boto, pega.
São tantas lembranças que poderiam criar tangências para outros textos. A prova dessa situação está no sentido de que meu foco de digitação e lembranças estava na chegada do Reisado e nada além e só agora que me dei conta de que devo retomar essa fala do cenário folclórico.
Sentada em sua cadeira, Vó Carrola já ouvia pelo eco do Riacho do Rio Quente como costumamos chamar, o estampido de um foguete e as gaitas e zabumba em boa sintonia com o cenário da caravana e da cajarana. Desciam da Avenida, pequeno vilarejo mais próximo do Riacho do Rio Quente e aos poucos chegavam passando sobre as manilhas que formam a ponte limítrofe entre Ribeira do Amparo e Cipó. A proporção que avançavam teriam que descer por outra estrada em função do riacho não estimular o acesso ao corredor que se esbarrava nele. Criava-se um aspecto maior de ansiedade e meninos que éramos a jogar furão, brincar de garrafão e soldado ladrão, tínhamos a missão de escutar tamanha sinfonia rural marcada pelo toque da zabumba. Agora e próximos uns 70 metros estavam os gaiteiros e a cadeira de Vó Carrola. A música para São José, oh de Casa, Oh de fora era a condução para o mundo do entrosamento entre quem esperava e quem chegava e o pode entrar era certeza de que a festa estaria só começando num mundo cheio de simbologias e pertencimento.
Fazendo o texto, fica uma impressão de que aquele tempo continuou com o enveredamento de minha família. Criamos raizes, provocamos o reconhecimento das comunidades quilombolas, a citar a Varzea Grande, vizinha ao mundo dos descendentes de Vó Carrola e um dos meus filhos, o Bruno, essa expressão de colocar o artigo na frente é comum da Boa Hora, povoado de Ribeira que deu origem a minha mãe Ermita. Sim, o Bruno tem fortes raízes e se diz incorporado ao mundo de Vó Carrola e em seu aniversário que por coincidência ser dia 22 de Agosto, quando comemorado não falta a reza e os gaiteiros. Lucinha, a esposa, nessa fase da vida quer replanejar-se e dar aula na comunidade da Várzea Grande, como fazia pai e quer até colocar o nome desse Projeto de Nivaldo Cruz bem como o nome de um ranchinho que adquirira ao lado, do primo querido Bonifácio. O Breno, o outro filho não tem jeito de gostar da roça e morar nela. Eu sempre digo que será meus últimos anos de vida e nem sei se dias. Anos por em função das vivências divinas e de expectativa de vida, faltam ai uns 20 ou 25 anos de vida e se for antes e longe disso, só se for por doença ou fatalidade. Para não mudar o foco fica aqui o momento de lembranças dos gaiteiros e Vó Carrola.

*Filetti é uma linha da origem de nossa família. Dizem ser Filete. Como tem aroma de migrações, 
italianizei para Filette.



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